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sábado, fevereiro 07, 2009

Mentes Lúcidas: Sobre a Falácia Neoliberal

Contra argumentos não há factos?

por
Sandra Monteiro in
http://pt.mondediplo.com/spip.php?article443

Durante anos, os defensores do neoliberalismo responderam a todas as críticas fazendo um apelo a que se abandonassem as ficções socializadoras e estatizantes que a história, sobretudo após a queda do Muro de Berlim, mostrava estarem ultrapassadas. Ao contrário do que acontecia com o pensamento neoliberal, cuja difusão a nível global era visível, as ideias dos que advertiam para os impactos socioeconómicos, políticos ou ambientais muito negativos da exclusiva regulação pelo mercado pecavam por não resistirem ao teste da realidade. E, insistiam os neoliberais, contra factos não há argumentos.

Tudo à sua volta eram argumentos ideológicos, contrários à organização «natural» e ao impulso para a livre troca – de mercadorias, bem entendido. A denúncia desse carácter ideológico, além de favorecer uma conveniente fuga a discussões menos simplistas sobre os ditos «factos», cimentou a própria ideologia neoliberal e eximiu-a do ónus da prova da sua própria adequação a um contrato social em que as sociedades, democraticamente, se revejam.

É mais fácil liberalizar, desregulamentar e flexibilizar, mesmo quando tais medidas são acompanhadas de pesadas consequências para as sociedades e o planeta, se se incutir a ideia de que ninguém tem propostas alternativas, porque outras formas de organização social até já foram tentadas e não resultaram. A falta de alternativas é um poderoso mecanismo disciplinador.

Dizer que ninguém previu a crise que hoje se instalou na economia global, com o seu cortejo de devastações sociais, faz parte desta mesma narrativa neoliberal. Contribui para a invisibilidade de perspectivas diferentes e diminui a pressão sobre a mudança, na esperança de que tudo, ou quase tudo, possa ficar na mesma.

Há muito que vem sendo analisado o carácter cíclico de crises cada vez mais graves, o facto de os «acidentes» serem afinal sistémicos, de a instabilidade e o risco estarem instalados no âmago do próprio modelo liberal [1]. Evocar a falência deste modelo não significa, note-se, qualquer convencimento de que ele esteja prestes a desaparecer. Significa antes uma opção por recentrar o debate sobre o nosso futuro comum na procura, certamente conflitual, de um modelo que coloque os seres humanos e o planeta no centro de um novo contrato social.

O disfuncionamento sistémico hoje observável na esfera financeira, que se inicia com a crise no crédito hipotecário subprime e o sobreendividamento das famílias, contagiando-se à economia real, apanha o cidadão comum numa armadilha montada ao longo de décadas e que não deixa de ser perversa. Após os «trinta anos gloriosos» de crescimento económico (1945-1973) em que vigorou o «consenso keynesiano», assistiu-se a uma conjugação de medidas que liberalizaram as trocas comerciais e os mercados financeiros, introduziram a disciplina orçamental e reformas fiscais regressivas, desmantelaram o sector empresarial do Estado e desregulamentaram o «mercado de trabalho».

Este período do «consenso de Washington», com a liberalização dos anos 80 e 90 e a crescente financeirização da economia, ilustra bem, como assinala o economista João Rodrigues para o exemplo dos Estados Unidos, «a conjugação de medíocre crescimento dos rendimentos e de injustiça social, indissociáveis da configuração de capitalismo sob hegemonia da finança de mercado» [2]. Como lembra o economista Frédéric Lordon [3], as «lógicas puras da finança de mercado» alimentam bolhas especulativas sem se preocuparem com o «risco global», desde que consigam «monitorizar o risco individual» e alcançar a «máxima rendibilidade financeira».

São essas lógicas que acabam por expor «directamente os assalariados à instabilidade da finança, tentando torná-los solidários» com o mesmo sistema que aumenta as desigualdades.
Esta armadilha dos baixos rendimentos e do sobreendividamento em que se vêem muitos cidadãos começa justamente no mundo do trabalho. Como mostrou Carlos Farinha Rodrigues para o caso de Portugal, que aliás é um dos países mais desiguais da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) [
4], os salários e os ordenados são «a componente de rendimento monetário que mais contribui para a desigualdade total» [5].

Num contexto potenciado pela globalização financeira, essas desigualdades têm também impactos negativos sobre o conjunto da economia e da sociedade (instabilidade macroeconómica, fraudes, corrupção, criminalidade, diminuição das condições de saúde e da esperança de vida, etc.), como mostra um recente relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) [6].

Algo vai mal num contrato social em que é justamente a estes cidadãos que depois se pede para compreenderem a necessidade de salvar o sistema financeiro. Sobretudo quando foram adoptadas medidas públicas de salvamento de bancos, mas parecem mais difíceis de concretizar medidas eficazes de regulação do sector (eliminação de offshores, criação de taxas de juro diferenciadas para investimentos especulativos e produtivos, etc.).

E também porque continua a insistir-se no regresso do Estado ao papel de bombeiro (depois de socializadas as perdas, volta-se aos lucros privados?), no dogma do comércio livre e na pressão para reduzir salários (mas nunca, por exemplo, para actuar ao nível da redistribuição, aumentando a justiça fiscal).

Os que entenderem que, como sociedade, de facto podemos fazer melhor, apostarão na regulação da esfera financeira, na justiça salarial e fiscal, no combate ao desemprego e às desigualdades, no investimento público, no reforço do Estado social e no desenvolvimento sustentável. Empenhar-se-ão num novo contrato social orientado para o interesse público e que exija uma maior participação cidadã na vida pública, desenvolvendo formas múltiplas de cooperação que contrariem a mercadorização do viver comum.

Quanto aos defensores do neoliberalismo, se puderem reagirão à crise dizendo, desta vez, que contra argumentos não há factos.

segunda-feira 2 de Fevereiro de 2009

Notas
[
1] Ver Frédéric Lordon, «O mundo refém do poder financeiro», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Setembro de 2007.
[
2] Ver dados em João Rodrigues, «Lições da crise: A história não acabou», Jornal de Negócios, 30 de Setembro de 2008.
[
3] Cf. «Crises financeiras: não tirar qualquer lição…», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Março de 2008.
[
4] A par dos Estados Unidos, o México e a Turquia –
www.oecd.org/document/53/0,3343,en_2649_33933
_41460917_1_1_1_1,00.html.
[
5] «Desigualdade económica em Portugal», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Setembro de 2008.
[
6] www.ilo.org/public/english/bureau/inst/download/world08.pdf.

2 comentários:

  1. Muito bom post!De entre as questões nele suscitadas, e são várias, uma há que é urgente debater.A ideia feita, que habita muita cabeça,de que não há alternativa a este sistema, é a principal resistência à construção de uma dinâmica social de ruptura.Há alternativas.É preciso semear esperança é preciso acreditar que tem que haver uma saída para este ciclo infernal de crise em crise até ao estoiro final.
    Nunca a humanidade se colocou a si própria problemas para os quais não tivesse já as respostas adequadas.Uma ideia que aprendi em Marx e que continua,como tantas outras, plena de actualidade.
    Questões de combate ideológico a que temos que regressar ou comem-nos outra vez com muito sofrimento pelo caminho.

    Vítor Aleixo

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  2. CRIMINALIDADE AUMENTA

    A pobreza não explica tudo. Há 50 anos os portugueses eram bem mais pobres do que o são hoje e a criminalidade violenta era praticamente inexistente entre nós, em particular ao assalto com extrema violência sobre as vítimas. Se mais pobreza implicasse mais criminalidade, então não teria sido assim.

    Já há algum tempo um Mayor de Nova Iorque decidiu que não se deveria menosprezar a pequena criminalidade nem os pequenos delitos, porque a sensação de impunidade se instala nos jovens delinquentes, estes vão facilmente progredindo para infracções cada vez mais graves até que a situação se torna incontrolável.

    Implementou então a célebre "Tolerância Zero" que, como se sabe, deu óptimos resultados, reduzindo num só ano a criminalidade em Nova Iorque em cerca de metade. Até os comboios que andavam todos sujos com "grafittis" andam hoje impecavelmente limpos.

    A actual política portuguesa de manter na rua os criminosos, mesmo depois de várias reincidências, faz (como dizia o Mayor) crescer a sensação de impunidade: o criminoso continua com as suas actividades criminais, vai subindo o nível dos seus delitos e serve de exemplo para que outros delinquentes mais jovens sigam o mesmo caminho.

    Esta política errada está a atrair ao nosso país a criminalidade europeia, que se apercebe dos nossos cada vez mais "brandos costumes". Não podemos tolerar que isto aconteça, na esperança de que os criminosos sejam um dia capturados noutro qualquer país da UE e que aí cumpram pena.

    Dificultar a obtenção de uma licença de porte de arma não tem qualquer efeito sobre os criminosos violentos. Quem acredita que eles tiram uma licença de porte de arma e a compram num armeiro legal? Não! Compram-na nos mercados do sub-mundo do crime e muitas delas são até superiores às das polícias. O tempo em que os delinquentes faziam sobretudo uso de armas furtadas já lá vai, por isso dificultar a obtenção de uma arma legal serve para o criminoso se sentir mais seguro e impede a autodefesa da vítima, que pode sentir arrombarem-lhe a porta mas nada poder fazer porque não tem com que se defenda. Há um ditado americano que diz: "mais vale ter uma arma e nunca precisar dela do precisar de uma e não a ter".

    Os partidos de esquerda parece terem ficado traumatizados pelos regimes totalitários, pois desculpabilizam até à exaustão a criminalidade com as dificuldade económicas e com isso estão a desorientar o seu eleitorado natural: os mais pobres que são também os mais desprotegidos face à criminalidade. Têm por isso muita responsabilidade relativamente ao crescimento da extrema direita que tem um discurso bem mais sensato sobre o combate crime.

    Obama promete ser implacável no combate ao crime e defender ao mesmo tempo os mais desfavorecidos. Não me parece incompatível.

    Zé da Burra o Alentejano

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