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quinta-feira, março 27, 2008

Governar sem povo: Perto do delírio

José Gil na revista Visão de 20 de Março de 2008:

A teimosia como princípio

"Depois da manifestação dos professores a ministra da Educação recuou ou não recuou? A pergunta não teria o menor interesse relativamente ao que se joga neste conflito, se não revelasse, afinal, um certo estilo de governação. Porque é que um recuo do governo tem de ser necessariamente um sinal de fraqueza? Porque é que o reconhecimento dos erros não pode mostrar, pelo contrário, força e capacidade de se remodelar e avançar? Infelizmente hoje, em Portugal, isso não é possível.

O primeiro-ministro habituou-nos a identificar teimosia com estilo de liderança política. Transforma-se um traço de carácter em princípio de governação, ou em estratégia dura para impor as suas ideias. Este pequeno facto pode ter as mais nefastas implicações. Primeiro, significa que a vontade do chefe se sobrepõe ao debate, à critíca, ao diálogo. Dentro do PS, as notícias sobre a última reunião da comissão política nacional do dia 10 revelam um estado de coisas lamentável: depois de um discurso de uma hora e meia de José Sócrates, nenhum participante fez uma pergunta, levantou uma dúvida, pediu um esclarecimento, mesmo depois de o primeiro-ministro ter incitado a isso.

Fora do partido, a teimosia pessoal elevada a princípio político implica uma ruptura com o povo: deixa-se de o ouvir, deixa-se de ver os sinais de perturbação social; deixa-se de sentir os movimentos finos de forças que percorrem a sociedade e a que a toda a governação democrática deve estar atenta. Nasce o risco de desnaturação da democracia: não só pela ameaça de deslize para o autoritarismo que contamina todas as posições de chefia no poder (dois exemplos: não por acaso foi possível que agentes da PSP fossem às escolas para identificar professores que iam à manifestação; a extraordinária rigídez, mais socrática do que a de Sócrates, do ME), mas pelo isolamento e autismo a que o governo a si mesmo se condena.

O CORTE COM A REALIDADE leva à convição de que há só uma razão (a do chefe: as suas razões são a razão), uma só via ("não há alternativas"), um só mundo (o mundo sonhado da efectivação da política única). A teimosia gera intolerância, a intolerância alimenta-se de um pensamento pobre e maniqueísta: ou preto ou branco, ou comigo ou contra mim. Clinicamente, estamos perto do delírio. Com múltiplas tentações paranóides.

Governa-se como se a vontade do povo descontente quisesse a morte (queda) do Governo. Como se a população fosse contra, radicalmente contra o poder. O que leva por reacção, a governar contra o povo.

Um exemplo claro: quem examina seriamente, em pormenor, este modelo de avaliação de professores e as condições da sua aplicação fica com a forte impressão de que os seus conceptores estão fora da realidade. Da realidade do que é uma escola, do trabalho dos professores, da sua relação de aprendizagem com os alunos. E, depois da manifestação, não houve "recuo da ministra": a rigídez continua, apesar dos "ajustamentos" prometidos.

SEGUNDO; NÃO É POSSÍVEL que uma manifestação, uma greve, um sinal importante de descontentamento popular não tenha o minímo efeito sobre o poder.
"Era o que faltava se se governasse segundo o grau das manifestações!", disse o primeiro.ministro, depois de 100 mil manifestantes desfilarem em Lisboa. E se fossem 500000 mil? Declarar, como fazem vários ministros, que "todos têm direito a manifestar-se!" e, depois, nada fazer, anulando as manifestações com uma frase, é simplesmente perverso.

E manifesta desrespeito pelas pessoas. Terceiro, enfim, é a própria ética da democracia que está em causa. Quando o Eu, como instância fundadora, absorve o mundo e ascende ao divino (o Único único, sem alternativas nem diferenças), a ética das forças de vida desaparece, derrotada pela não-ética da violência política.
Que tudo isto seja, da minha parte, puro delírio, é o que sinceramente desejo."

Frases chave: Teimosia como princípio, governar sem povo; autoritarismo; caminho único; desnaturação da democracia; eucaliptização do partido socialista; rebanho acrítico; delírio governativo.

Resta o défice...o que é muito pouco. E não, não é a via única...porque no dia em que houver vias únicas e não houver alternativas, é a morte da política...e o triunfo da economia.

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